Uma carta para Érica Tessarolo

11 de setembro de 2012 § 6 Comentários

Escrevi essa carta depois de assistir o Para Ver o Azul da Carne, solo de Érica Tessarolo. E ela deixou eu publicar aqui no blog. Aí está.

Ainda dá tempo de ver

Érica,

Quero te dizer sobre a minha percepção do seu solo.

Presenciei uma fase anterior desse trabalho, naquele solo que você fez lá no TGI em 2008. Lembro especialmente que você também passava um momento sentada num banquinho, depois partia para um movimento diagonal bastante intenso e incisivo. Lembro dos jornais voando. Vejo que existe uma continuidade no trabalho corporal e continuo achando tudo muito sincero e muito bonito, apesar de eu não ter muito repertório para falar sobre isso. Mas tenho alguma sensibilidade para interpretar sinais e juntar idéias. Adianto que sou meio marxista e fico procurando dialética em tudo. E me perdoe se a minha memória confundir e reordenar as coisas.

No cinema a minha especialidade é montagem e essa qualidade é muito grande nesse trabalho. Montagem é a organização da exposição de idéias/imagens/movimentos/coisas numa linha do tempo. Isso está presente, portanto, em qualquer obra de arte (Eisenstein). Inclusive em pinturas e fotografias, porque o olhar percorre as superfícies em círculos, criando relações temporais entre seus elementos (Flusser).

Gosto das coisas que aparecem e são concatenadas com outras e depois reaparecem com um sentido novo. Gosto do ritmo (alternâncias de intensidade/respiro, duração de cada coisa). E isso é Montagem pura.

Vejo três atos bem claramente delimitados no espetáculo (três é o número mágico da dialética, não o dois).

Um.

Sabendo que você tinha Francis Bacon como inspiração, te vi sentada no banquinho como uma modelo posando para um pintor (que estava lá em ausência, ou intrometido em você). E aos poucos você ia se borrando, se transformando, com uma certa dor, numa figura como as de Bacon. Esta certa dor me pareceu uma vontade de afirmação sua, uma vontade de ser, de se individuar à revelia da enorme autoridade do pintor.

Por isso você inverte o banquinho, se levanta. Mas você já está em desequilíbrio, engatinha de mão e cotovelo, um bicho, uma borra de si. Volta pro banquinho, tenta gritar, mas pinturas não fazem barulho. E depois de uma luta de expansões e contrações, movimento e estase, você foi ao chão, a luz diminuiu e apareceu aquela seta apontando pra você.

Foi quando eu tive a primeira chance de respirar e me perguntar “Será que essa seta vermelha está querendo me mostrar onde está o azul?”

Dois.

E aí você escreveu, o que lhe é dado fazer mesmo numa pintura. “Para encontrar o azul uso pássaros. As letras fizeram-se para as frases. (Machado de Assis, Manoel de Barros, eu)”. E o que mais me tocou nisso tudo foi o “eu”, foi você se afirmando como autora no ato de enunciar essa coleção de referências e representar a síntese delas com um ganho, um acréscimo, que é só seu e só você poderia fazer. E aí você inverteu a autoridade desses autores todos, os colocou sob seu domínio, sob sua grandeza.

O texto é muito forte porque é mais inteligível para a consciência, apesar da síntese não estar ali escrita. As duas idéias são de certo modo opostas: a de fazer uso de algo para atingir um objetivo (dos pássaros para achar o azul) e de fazer-se, criar-se, recriar-se para servir a um propósito (as letras para as frases).

Me perguntei aí se não são as letras que fazem uso de nós para se frasearem, que é mais ou menos outra idéia Flusseriana. Mas neste ponto os seus braços já viraram asas. O azul já virou o céu.

Três.

A carne é vermelha porque é cheia de sangue. A carne é terrena, sucumbe à gravidade, sucumbe à violência. A carne é fraca. O azul é sereno, é celeste, é leve, sublima e voa. Imagino o azul da carne como um momento ou um lugar de bondade que você achou no meio das pinturas de Bacon e no meio do mundo. Olhando de novo o tríptico vejo mesmo umas borras azuis entre os músculos.

De novo uma mudança de luz e a seta vermelha reaparece ali no cantinho oposto àquele onde você começou (formando uma diagonal inversa à que você fazia em 2008), não mais posando para o pintor, mas se concentrando em si. Não mostra o rosto, mas as costas. Não pude deixar de ver na sua concentração corporal a forma do círculo, que representa a harmonização de forças que atuam em sentidos contrários, que representa a individuação, a simplificação geométrica, a síntese. A forma que a sombra desenhava em você me dizia alto “Eu tenho asas… Eu não tenho asas”.

No fim me lembro do começo, em que o palco está vazio e é você que vai pra lá e é você que leva o seu banquinho e se faz, se cria, se recria e faz uso de si para isso. Por isso só posso te agradecer.

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